quarta-feira, 18 de março de 2009

Ninguém confunde carta de amor com narração de futebol - Heloisa Amaral


Em nosso dia-a-dia, quando lemos ou ouvimos gêneros discursivos mais frequentes no cotidiano, os reconhecemos na hora. É esse reconhecimento que nos permite a comunicação imediata em diferentes situações. Outros gêneros, mais distantes de nossos domínios diários de comunicação parecem estranhos ao ouvido e, para compreendê-los melhor, precisamos examiná-los, usar dicionários, quase como se estivéssemos tratando com uma língua estrangeira.
Um exemplo de gênero bem conhecido é a carta de amor. Embora cada uma tenha suas particularidades — dependendo de quem escreveu, em que época escreveu ou para quem escreveu — quando lemos cartas de amor sabemos de que gênero se trata porque todas têm semelhanças gerais entre si. Isso ocorre porque as pessoas que escrevem esse gênero estão numa situação de comunicação cujos elementos se repetem: há alguém afetivamente interessado em alguém, que espera que a pessoa objeto de seu interesse tome conhecimento de seus sentimentos por meio da carta.
Outro exemplo de gênero textual bastante conhecido, desta vez oral, é a narração de um jogo de futebol pelo rádio. Enquanto torcedores ansiosos acompanham, um narrador descreve e comenta os lances da partida, estabelecendo um vivo diálogo com o ouvinte. Podemos afirmar que esse diálogo é entre conhecedores do esporte. O narrador precisa conhecer bastante de futebol, e os torcedores, por sua vez, devem ter conhecimentos suficientes da área futebolística para entender a narração que o locutor faz.
Essa narração, para cumprir as finalidades de comunicar a quem ouve as emoções e as particularidades do jogo, tem que descrever as posições dos jogadores em sua movimentação pelo campo em tempo real, o que determina que o narrador fale mais depressa quando os lances são mais rápidos. A voz do narrador ganha maior ou menor emoção conforme os lances da partida. Se a bola se aproxima do gol ou um jogador perde um lance, a tensão dos momentos é revelada em seu tom de voz.
Entre os aspectos que identificam um gênero está o “tom”, ou seja, certa musicalidade própria, e o ritmo da fala. Esses elementos são fortes pistas para que ninguém confunda carta de amor com narração de jogo de futebol.
Os infinitos gêneros textuais, todos os existentes, assemelham-se nesses aspectos: são formas de linguagem que têm elementos mais ou menos estáveis para que as pessoas possam recorrer a eles para se comunicar, entre eles tom e ritmo. Esses elementos tornam-se estáveis e reconhecíveis nos gêneros porque vão se confirmando a cada vez que são produzidos. Isso acontece porque gêneros discursivos são produtos de situações de comunicação parecidas, em áreas de conhecimento ou experiência humana semelhantes.
Voltando aos exemplos acima, cada vez que alguém narra, em qualquer época, um jogo de futebol vai ter que se submeter aos acontecimentos que narra, ao conhecimento das regras do futebol, ao objetivo da comunicação (que é manter o público interessado informado sobre o que acontece no campo), ao tempo pré-determinado em que o jogo acontece, aos lances mais ou menos emocionantes da partida. Isso dá estabilidade a elementos do gênero, como tom e ritmo, por exemplo.
Mas, se alguns elementos do gênero são estáveis, outros não. No caso da narração de futebol, podemos sentir a diferença entre a modalidade transmitida pelo rádio e a transmitida pela TV. No segundo caso, a rapidez característica da transmissão radialística desaparece. O ritmo rápido não é necessário porque o narrador, na TV, compartilha imagens com o expectador, não tem necessidade de descrever minúcias. Com isso, criam-se oportunidades para alguém fazer comentários, dialogando com o narrador e com o público que observa os lances da partida.
Teste seus conhecimentos:Que nome se dava, na década de quarenta e cinquenta, aos goleiros? E aos jogadores da defesa? Como se chamava o escanteio?Além dessas, você se lembra de outras palavras que mudaram nas narrações de futebol?
Outra coisa que muda com o tempo é o vocabulário (o nome que se dá aos jogadores nas diferentes posições, o nome dos espaços na quadra), que se atualiza continuamente.
Na carta de amor, também há mudanças relacionadas com a época, embora a situação de comunicação em que são escritas seja semelhante ao longo do tempo. Veja um trecho de “Cartas de amor” , de Eça de Queiroz:

“Por isso o meu amor tinge esse sentimento indescrito e sem nome que a Planta, se tivesse consciência, sentiria pela luz.
E considere ainda que, necessitando de si como da luz, nada lhe rogo, nenhum bem imploro de quem tanto pode e é para mim dona de todo bem. Só desejo que me deixe viver sob essa influência, que, emanando do simples brilho das suas perfeições, tão fácil e docemente opera o meu aperfeiçoamento. Só peço esta permissão caridosa. Veja pois quanto me conservo distante e vago, na esbatida humildade de uma adoração que até receia que o seu murmúrio, um murmúrio de prece, roce o vestido da imagem divina...
Mas se a minha querida amiga por acaso, certa do meu renunciamento a toda a recompensa terrestre, me permitisse desenrolar junto de si, num dia de solidão, a agitada confidência do meu peito, decerto faria um ato de inefável misericórdia como outrora a Virgem Maria quando animava os seus adoradores, eremitas e santos, descendo numa nuvem e concedendo-lhes um sorriso fugitivo, ou deixando-lhes cair entre as mãos erguidas uma rosa do paraíso”
Certamente as cartas de amor atuais (ou e-mails de amor) não usam a mesma linguagem, mas com certeza são escritos por uma pessoa apaixonada, para o objeto de sua paixão ler, com a finalidade de contar, à distância, o quanto ama e precisa dessa pessoa, objeto de amor. E por que à distância? Por que alguns sentem a necessidade de escrever suas juras de amor e não declará-las pessoalmente? Boas perguntas para levar à sala de aula e provocar uma discussão sobre gêneros de discurso...
Assim como nas duas situações exemplificadas até aqui, cada uma das inúmeras situações de comunicação que ocorrem no dia-a-dia exige gêneros próprios para acontecer. E, retomando, se forem situações que acontecem em circunstâncias parecidas, elas marcarão o gênero que nelas ocorre com expressões próprias e darão a cada um deles um “tom” muito particular.
Os exemplos são infinitos: todos os gêneros médicos, como as receitas, os pedidos de exame, os artigos científicos etc.; os jurídicos, como as leis, as petições, os discursos da defesa e da acusação etc.; os esportivos, como narrações de jogos, tabelas de campeonatos, crônicas esportivas etc.; os jornalísticos, bastante conhecidos; os gêneros escolares, como a dissertação, as questões de provas, as atividades que se seguem à leitura de textos, as comunicações escola/família etc.; os científicos, com particularidades em cada área de conhecimento; os técnicos, como os da informática e todas as demais possibilidades de comunicação humana. Se há comunicação, diálogo entre pessoas, há gênero.
Assim, os gêneros textuais, como você pôde ver pelos exemplos, são a língua viva, a língua tal como ocorre em situações de comunicação social, sejam essas situações mais formais ou menos formais. Compreender língua e linguagem por essa perspectiva muda radicalmente o que se pensa sobre seu ensino. Em vez de práticas de memorização, treinamento motor e uso do texto como pretexto para ensinar gramática, o que se procura é fazer com que os alunos compreendam a situação de produção dessas linguagens na sociedade e as particularidades que os gêneros de textos adquirem por estarem ligados a diferentes situações de comunicação e a diferentes áreas de produção de conhecimento.
Nós, do Escrevendo o Futuro, entendemos que para ensinar língua, leitura e escrita não podemos prescindir dos gêneros de discurso. Depois de ler este texto, você pode ver que há fortes razões para isso: os gêneros são o espaço onde há língua acontece, os resultados das diferentes e inúmeras situações de comunicação nas quais as pessoas se envolvem.
Um bom modo de fazer com que os alunos aprendam diferentes gêneros textuais é planejar sequências didáticas para seu ensino, como é demonstrado nos fascículos do Escrevendo o Futuro: Pontos de Vista, Poetas da Escola e Se bem me Lembro...
As sequências didáticas devem esclarecer quais são os elementos próprios da situação de comunicação em questão, levar o aluno a ter contato com exemplares variados do gênero e exercitá-lo no domínio de suas particularidades, para que sua produção escrita seja o mais próxima possível do gênero textual escolhido.
Etapas das sequências didáticas
1. Apresentação da proposta de trabalho com um gênero de discurso, sempre associada a questões de interesse dos alunos.
2. Partir do conhecimento prévio dos alunos
3. Estabelecer contato inicial com o gênero textual em estudo.
4 Propor a escrita de um texto no gênero, como forma de diagnosticar o que os alunos sabem sobre ele e o que ainda precisa ser aprendido.
5. Ampliação do repertório, com leitura e análise de vários textos do gênero escolhido.
6. Organização e sistematização do conhecimento: estudo detalhado dos elementos do gênero, suas situações de produção e circulação
7. Produção de um texto coletivo, com a participação do professor como escriba, para tornar o gênero e seus elementos um conteúdo partilhado pela classe.
8. Produção individual de um texto o mais próximo possível do gênero estudado.
9. Revisão e reescrita do texto individual, respeitando elementos do gênero, coesão e coerência a correção ortográfica e gramatical.
Encontre Cartas de Amor, de Eça de Queiroz, em Domínio Público
Publicado em: 17/08/2006

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